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Questões Laborais relacionadas às Vítimas de Violência Doméstica em Portugal

Infelizmente os crimes de violência doméstica são praticados desde os primórdios da humanidade, contudo, somente na história recente é que começou-se repudiar este tipo de tratamento e como não deveria deixar de ser, o ordenamento jurídico mundial passou a impor regras claras para punição dos agressores e proteção das vítimas.

 

Segundo o disposto no artigo 152 do Código Penal o legislador português já equipara como vítima de violência doméstica todo aquele que sofrer maus tratos físicos ou morais, bem como, qualquer pessoa nomeadamente indefesa em razão de idade, deficiênica, gravidez ou dependência econômica, desde que haja coabitação.

 

Essa definição é de suma importância, posto que coloca como vítima de violência domestica, não apenas o parceiro amoroso, mas também todas as pessoas que co-habitam com o agressor, sejam eles filhos, enteados, ascendentes.

 

A possibilidde de vítimas é bastante extensa, de forma que este artigo pretende limitar o estudo da violência doméstica proveniente de relacionamento amoroso da vítima com o agressor, seja ele homem ou mulher dentro de um relaciomanento hetero ou homosexual.

 

Não há como tratar do tema violência doméstica e não mencionar a Convenção do Conselho da Europara para a Prevenção e o Combate à Violência contra Mulheres, de 11 de maio de 2011. Neste tratado foi fomentada a cooperação entre todos os serviços públicos para combater este, que segundo meu entendimento é de responsabilidade coletiva, já que abrange todos níveis culturais e econômico, sendo que é inegável a necessidade do apoio de toda a sociedade para apoiar a vítima, por uma questão de humanidade.

 

No mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde 1 em cada 3 mulheres são ou serão vítimas de violência domestica, provenientes de relacionamentos amorosos abusivos, e um dado alarmante se dá pelo fato de que existem denuncias que ocorrem em mulheres a partir de seus 15 anos.

 

Segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima APAV, através do relatório divulgado em 08 de março de 2024, nos últimos 3 anos, o número de vítimas de violência doméstica apoiadas pela APAV aumentou 22,9%, perfazendo um total de 31.117 vítimas. A maior parte das vítimas apoiadas era do sexo feminino (n=25.240; 81,1%).

 

Ou seja, mesmo com medidas de proteção aplicadas mundialmente, afim de conscientização, o número não para de crescer e indaga-se: houve aumento de vítimas ou houve aumento de pessoas que perderam a vergonha de se expor e procurar ajuda ?

 

Algo que merece uma reflexão mais apurada !

 

Entre 2021 e 2023, chegaram ao conhecimento da APAV um total de 64.899 crimes de violência doméstica, sendo os comportamentos violentos mais frequentes a ameaça ou coação (19.335), os maus tratos físicos (16.926), a injúria ou difamação (16.142) e a perseguição (3.952).

 

Ante a gravidade do tema e repercussão na vida das vítimas não há como se olvidar dos direitos que precisam ser resguardados desses cidadãos nas relações laborais.

 

Considerando que o direito ao trabalho está previsto na Constituição de República Portuguesa, em seu artigo no. 58, o legislador português, através das leis ordinárias fez mecanismos para que os direitos e garantias das vítimas sejam resguardados bem como, para orientar a sociedade sobre a condução adequada da questão que entende-se ser sim um problema de ordem pública.

Dentre os principais  direitos previstos no Código do Trabalho, podemos citar: a justificação de faltas, a alteração do local de trabalho através da transferência, a suspensão do contrato de trabalho, o teletrabalho, subsídio para fins de licença de reestruturação familiar, dispensa do cumprimento do aviso prévio na hipótese de cessação do contratto de trabalho por iniciativa da vítima e acesso ao subsidio desemprego, mesmo quando a cessação do contrato de trabalho se deu por iniciativa da vítima.

A Lei no. 112/2009 de 16 de setembro trata sobre a prevenção à violência doméstica, bem como, prevê mecanismos de proteção e assistência às vítimas. No referido diploma legal, o legislador conceitua quem é a vítima, o agressor, bem como, reconhece que a violência doméstica é um problema de toda sociedade e portanto deve ser por todos combatida, isso, inclusive justifica o entendimento do legislador português intervir nas relações laborais, de forma, a obrigar o empregador através de dispositos legais a viabilização de uma condição minimamente digna para as vítimas do referido crime.

 

Para que lhe sejam concedidos os direitos de pessoas vítimas de violência doméstica, ou seja, a atribuição do estatuto da vítima, o legislador vinculou que seja feita a noticia do crime, perante as autoridades policiais, cabendo inclusive a este órgão a emissao do certificato que viabiliza seu enquadramento no referido estatuto, conforme disposto no art. 14, assim, uma vez emitido o certificado pela autoridade policial, resta caracterizado o direito da vítima a ser aplicado, na esfera laboral, o disposto no Código do Trabalho.

 

Importante destacar que há incompatibilidade de requisitos para a concessão do estatuto da vítima de violência doméstica, posto que a Lei no. 112/2009 prevê a necessidade de denuncia, enquanto que o legislador no Código do Trabalho, no art. 195 prevê como requisito a apresentação da queixa-crime e saída da casa de morada da família.

 

Há entendimentos de que os dispositivos legais mencionados se contradizem, todavia, entendo que ambos dispositivos possuem o mesmo espírito, qual seja, a exteriorização do problema e a busca da ajuda do Estado. Seja pela denúncia, seja pela queixa crime, a vítima exteriorizou o relacionamento abusivo, colocou um ponto final neste relacionamento e buscou a ajuda através da intervenção do Estado.

 

As faltas justificadas e o direito a licença para reestruturação

 

O artigo 249  do Código do Trabalho, versa sobre os tipos de faltas existentes no ambito das relações laborais. Neste sentido, o item l do no. 2 do referido artigo dispõe que consideram-se faltas justificadas aquelas em que a lei assim as considere.

 

Desta forma, é essencial analisar o Código do Trabalho com o artigo 43 da Lei no. 112/2009, assim, as faltas das pessoas que encontram-se amparadas pelo referido Estatuto serão sempre jusitficadas, o que deve ser analisado a depender do caso é de quem é a responsabilidade pelo pagamento da retribuição, que pode ser tanto da entidde empregadora como custeadas pelo serviço da segurança social.

 

Há ainda, em casos menos graves em que não há necessidade de afastamento por motivos de saúde, mas que a vítima precise de um tempo para se reestruturar, neste caso deve ser aplicado o previsto no artigo 43-A, B e C da Lei 112/2009 que dispõe sobre o prazo que a vítima terá para fazer essa reestruturação familiar que é de 10 dias e a quem compete o pagamento da retribuição neste período.

 

Direito de Transferência

 

Nas hipóteses que a Entidade Empregadora possua mais de um endereço é possível que seja aplicado o direito de transferência de seu posto de trabalho, conforme disposto no art. 195 do Código do Trabalho.

 

Contudo, considerando na realidade são poucas as empresas que possuem mais de um endereço e que torna viável esse direito, o legislador previu de antemão, outras possibilidades que podem ser exercidas para garantir os direitos dos trabalhadores vítimas de violência doméstica, sendo eles: a suspensão do contrato de trabalho, a possibilidade de exercício do teletrabalho e ainda, condição especial para resolução do contrato de trabalho os casos em que não foram possível sua continuidade, possíbilidades estas que serão discorridas nos próximos tópicos.

 

O que merece ser destacado é o disposto no artigo 42 da Lei no. 112/2009, que abrange o direito de transferência para os trabalhadores de funções publicas, sendo que para estas pessoas a viabilidade de transferência é mais viável, tendo em vista a viabilidade geográfica que abrange todo país.

 

O Direito ao Regime de Teletrabalho

 

Com os avanços tecnológicos, especialmente aqueles impulsionados pelo período da pandemia, a sociedade foi obrigada a se adequar e constatou-se que muitas atividades poderiam ser exercidas remotamente.

 

Inosbtante não ser uma prática habitual na maior parte das relações laborais a pandemia veio provar que essa condição é possível.

 

Neste sentido, e considerando que as relações humanas são complexas e as possibilidades de desdobramentos são infinitas, a opção de teletrabalho é uma opção que pode ser usufruída quando a atividade laboral assim o permita.

 

Passado o trauma inicial da coragem do fim, a vítima precisa retomar sua rotina, se sentir útil e necessária, assim a viabilidade deste formato de trabalho é essencial sob o aspecto emocional e prático.

 

Este formato está previsto no artigo 166º.-A , no 1 do Código do Trabalho e da analise do referido artigo é inegável que o direito a teletrabalho é um direito que pode ser exercido, casa a vítima assim o deseje ou necessite, não podendo a entidade empregadora negar se não houver um justo motivo. A exceção é no caso de micro empresas.

 

Suspensão do Contrato de Trabalho

 

Entende-se que o legislador previu a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, quando não for possível a transferência, contudo, a dúvida é se esse direito somente poderia ser exercido de forma subsidiária, ou não.

 

O artigo 296, no 2 do Código do Trabalho versa sobre o direito da suspensão para os trabalhadores vítimas de violência doméstica, quando se faz necessário a ausência por mais de 30 dias anuais, conforme mencionado no tópico acima.

 

Essa foi a maneira encontrada pelo legislador em que este flexibiliza e entendo até humaniza a lei, já que este dispositivo pode amparar inúmeras situações, sem que necessariamente imponha ao empregador ou a segurança social o ônus desta suspensão.

 

O ponto que merece atenção, e que merece indagação é se esse dispositivo é viálvel, já que tira do trabalhador o amparo financeiro necessário para recomeçar a vida após o término do relacionamento abusivo.

 

 

Alteração do Horário de Trabalho

 

A Lei n.º 112/2009 no seu artigo 41.º dispõe que sempre que possível a entidade patronal deve acatar o pedido do trabalhador vítima de violência doméstica para alterar seu turno de forma prioritária, seja para diminuir a carga horária, seja para aumentar, óbvio dentro dos limites permitidos. Questiona-se muito sobre os efeitos práticos da referida medida, posto que se contrapõe com o disposto no art. 156 do Código do Trabalho, já que este as coloca como detentoras de um direito prioritário e não como um dever do empregador.

 

Denúncia do Contrato de Trabalho

 

Os artigos 400 e 401 do Código do Trabalho, garantem ao trabalhador que precisa denunciar o contrato de trabalho ante a situação de violência doméstica a dispensa do cumprimento do aviso prévio, não podendo portanto a Entidade Empregadora fazer qualquer tipo de cobrança ou exigência.

 

Neste sentido, também houveram alterações no que tange ao direito ao subsidio desemprego, posto que inobstante a denuncia do contrato de trabalho tenha ocorrido por iniciativa do trabalhador e portanto exclui-se o direito ao referido subsidio as alterações trazidas através do Decreto no. 113/2023 reconheceram de forma explícita que deve ser considerado como involuntário a cessação do contrato dos benefíciários do estatuto da vítima de violência domestica.

 

Assim, as recentes alterações são essenciais para que se faça justiça tratando-se inclusive da evolução do direito do trabalho em prol desses trabalhadores que encontram-se em situação transitória de vulnerabilidade.

 

Da Cessação dos Benefícios do Estatuto da Vítima de Violência Doméstica

 

No artigo 24.º da Lei n.º 112/2009 estão indicadas as situações que desencadeiam a cessação do estatuto da vítima, são elas: a vontade expressa da vítima, a verificação de fortes indícios de denúncia infundada, o arquivamento do inquérito, o despacho de não pronúncia e o transito em julgado da decisão que ponha termo ao processo.

 

Considerações Finais

Ainda que a violência doméstica esteja presente em todos os níveis sociais e culturais no mundo atual é impensável a possibilidade de independência, sem que esta esteja diretamente relacionada a questões financeiras.

A violência doméstica é um crime e por essa razão sua principal consequencia junto ao agressor é na esfera penal, todavia, para a vítima a segurança financeira é o que vai impulsionar a reconstrução de uma vida livre, bem como, o incentivo ao trabalho objetivando a estabilidade emocional, essencial para o reincio de um novo ciclo de vida livre das amarras físicas e psicológicas do agressor.

 

Ainda, que muitos digam que a lei não protege essa parte da população ouso discordar e se compararmos com o ordenamento jurídico brasileiro, é possível constatar que os direitos das trabalhadoras vítimas de violência domestica está muito mais avançado, a legislação lusitana reconhece que trata-se de um problema coletivo, que envolve além da segurança emocional, a proteção ao trabalho.

 

Trata-se de uma ferramenta extremamento útil e necessária para viabilizar à vítima um recomeço digno.

 

Artigo produzido por Daniela Polido, em 31/10/2024, advogada inscrita na OAB e OA.

 

 

Bibliografia

 

 

AMADO, João Leal – “Contrato de Trabalho – Noções Básicas”, Almedina Editora, 4ª edição, 2022.

 

QUINTAS, PAULA – QUINTAS, HELDER – Código do Trabalho, Anotado e Comentado,Almedina Editora, 7ª. Edição, 2023

 

Constituição da República Portuguesa, extraída  do site Diário da República (https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-aprovacao-constituicao/1976-34520775-49442075)

Informação retirada do site da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima de Violência Doméstica (https://vm.apav.pt/apav_v3/index.php/pt/3419-estatisticas-apav-vitimas-de-violencia-domestica-2021-2023)

 

Decreto – Lei 113/2023, extraído do site do Diário da República https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/113-2023-225044391

 

Informação Jurídica – Extraída do site da Ordem dos Advogados (https://portal.oa.pt/publicacoes/informacao-juridica/direito-nacional/%C3%A1reas-de-referencia/administracao-interna-fronteiras-protecao-civil-e-seguranca/violencia-domestica/

 

Dias, Isabel – Coordenadora – Violência Doméstica e de Gênero – Uma abordagem multidisciplinar – Editora Pactor

 

RODRIGUES, José Noronha, SOUSA, Cátia Filipa Carreiro – “O direito do trabalho e a proteção da vítima de violência doméstica” in Revista da Ordem dos Advogados, A.78, n.º1-2 (Jan.-Jun.2018), 0870-8118, – p.201-212.

(https://portal.oa.pt/media/130215/jose-noronha-rodrigues_catia-filipa-carreiro-sousa_roa_i_ii-2018-revista-da-ordem-dos-advogados.pdf )

 

Dra. Daniela Polido – advogada, inscrita na OAB e OA. Membro da Comissão Internacional de Direito do Trabalho da Associação Brasileira de Advogados. Experiência de 22 anos. Pós graduanda em Direito do Trabalho pela Universidade Católica do Porto

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