CARROS ELÉTRICOS EM CONDOMÍNIOS: UM NOVO DESAFIO JURÍDICO, TÉCNICO E COLETIVO

A chegada dos carros elétricos à rotina dos brasileiros está movimentando não apenas o mercado automotivo, mas também a gestão condominial. A princípio, pode parecer uma simples questão de instalar uma tomada na garagem. Mas, na prática, o cenário é bem mais complexo — e digo isso com base em uma experiência que acompanhei de perto.
Recentemente, atendi um condomínio onde um morador havia adquirido um carro elétrico e queria adaptar uma de suas vagas de garagem para instalar um ponto de carregamento. Um profissional foi contratado, e o parecer técnico foi claro: a rede elétrica do prédio comportaria aquele único ponto. No entanto, a questão foi levada à assembleia e o pleito foi negado. Por quê? Porque o condomínio possui diversas unidades, e tecnicamente não haveria como garantir que todos os moradores teriam o mesmo direito à instalação.
Ali começava o verdadeiro problema jurídico: permitir um seria abrir precedentes para todos. A única alternativa seria criar uma vaga coletiva de carregamento, em área comum — o que exigiria alteração de destinação e quórum qualificado, além de custos extras com adequação do espaço. O que faltava? Interesse coletivo. O que sobrou? Conflito.
FALTA INFORMAÇÃO TÉCNICA E JURÍDICA — E SOBRA INDIVIDUALISMO
O maior desafio que percebo hoje nos condomínios não é apenas a parte técnica. É a falta de informação — de síndicos, moradores e até gestores. Muitos pensam apenas na própria necessidade e esquecem que morar em condomínio é viver sob regras coletivas.
Instalar um carregador não pode ser tratado como uma decisão individual. Exige:
- Laudo técnico;
- Estudo de viabilidade financeira;
- Planejamento jurídico;
- E, principalmente, aprovação em assembleia com quórum específico, a depender do impacto da alteração.
Essa é uma realidade nova para muitos, e o risco de decisões apressadas é alto: um condomínio perfeitamente regular pode se tornar irregular por falta de orientação técnica e jurídica.
CONDOMÍNIOS NÃO ESTÃO PRONTOS — PRINCIPALMENTE OS MAIS ANTIGOS
Infelizmente, não acredito que os condomínios estejam preparados para essa nova realidade. Especialmente os que têm mais de 20 anos, cujas estruturas não comportam, de forma segura, a instalação de múltiplos pontos de carregamento.
Os empreendimentos mais novos ainda podem se adaptar, desde que com orientação técnica. O que falta é preparo: engenharia, administração, jurídico, cartório e prefeitura precisam caminhar juntos. Não se trata apenas de energia elétrica — trata-se de evitar que um ato impensado transforme um imóvel regular em irregular perante o cartório e o município.
MAS, POR ONDE COMEÇAR?
Para síndicos e administradores que desejam se antecipar a essa demanda, minha orientação é clara:
- Inicie com um estudo técnico da rede elétrica: é possível garantir um ponto por unidade autônoma?
- Não sendo possível, avalie com um engenheiro a viabilidade da criação de uma área comum para carregamento.
- Consulte um advogado especializado para avaliar os impactos jurídicos: alteração de destinação, necessidade de quórum qualificado, alteração de planta junto à prefeitura e averbação no cartório.
- Faça uma sondagem entre os condôminos: há interesse coletivo suficiente para justificar os custos e as mudanças?
Não adianta empurrar decisões goela abaixo — e nem deixar a situação correr solta por medo do embate. A gestão estratégica e transparente é o caminho mais seguro.
A COBRANÇA PELO USO DA ENERGIA: OUTRO PONTO QUE EXIGE CAUTELA
Há ainda o desafio da cobrança pelo uso do carregador, e aqui também vale cuidado. O consumo pode ser cobrado de três formas:
- Individualmente, com medidores próprios, caso a instalação seja feita na garagem privativa (desde que autorizada);
- Por rateio na cota condominial, quando os pontos de recarga estiverem em área comum — o que pode gerar injustiças com quem não utiliza o serviço;
- Ou por pagamento por uso, com controle de acesso e cobrança proporcional, o que exige controle interno e, em alguns casos, análise sobre eventuais reflexos tributários, caso haja lucro.
De qualquer forma, é essencial prever as regras com clareza na convenção ou no regimento interno, com aprovação formal em assembleia.
O PONTO POLÊMICO: A DOCUMENTAÇÃO ESQUECIDA
Por fim, quero trazer o que considero o ponto mais negligenciado: a alteração da planta e da documentação do condomínio.
Muitos estão criando áreas comuns para carregamento de carros elétricos sem alterar a convenção, a planta no cartório ou o projeto aprovado na prefeitura. E o pior: estão fazendo isso com quórum simples, quando o correto seria dois terços dos condôminos, nos termos do art. 1.351 do Código Civil, por se tratar de alteração de destinação.
Sem essa formalização, o risco é grande: o condomínio pode ser considerado irregular, o que impacta diretamente em financiamentos, vendas futuras e até responsabilidade civil da gestão.
CARROS ELÉTRICOS SÃO O FUTURO — MAS O FUTURO PRECISA DE PREPARO
A transição energética é uma realidade e vai se tornar cada vez mais presente nos condomínios brasileiros. Mas ela não pode ser feita de forma amadora. Envolve infraestrutura, direito condominial, registros públicos, direito urbanístico e muita conversa coletiva.
O síndico que quiser liderar esse movimento precisa estar disposto a estudar, ouvir e planejar. E os condôminos precisam entender que não se trata de proibir ou permitir, mas de fazer do jeito certo, com segurança jurídica e técnica, respeitando o coletivo e protegendo o patrimônio de todos.
Por: Dra. Caroline Pio
Dra. Caroline Pio é advogada especializada em Direito Condominial e Imobiliário e CEO do Caroline Pio Advocacia. Atua na defesa de condôminos e síndicos, com foco na prevenção de riscos, regularização imobiliária e resolução estratégica de conflitos. Preside a Comissão Nacional de Direito Condominial da ABA. Palestrante, professora, autora dos livros “Xô Inadimplência” e “Manual da LGPD para Condomínios” e criadora da Comunidade Dominando o Condomínio. Compartilha conhecimento sobre o setor condominial em suas redes sociais @carolinepio_